segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

A menina que roubava livros . . .





- Primeiro, as cores, depois os humanos. Em geral é assim que vejo as coisas. Ou, pelo menos, é o que tento. Eis um pequeno fato: você vai morrer. [...] Isso preocupa você? Insisto - não tenha medo. Sou tudo, menos injusta. Uma pequena teoria: as pessoas só observam as cores do dia no começo ao fim, mas, está muito claro que o dia se funde através de uma multidão de matrizes e entonações, a cada momento que passa. Uma só hora pode consistir em milhares de cores diferentes. Amarelos céreos, azuis borrifados de nuvens. Escuridões enevoadas. No meu ramo de atividade, faço questão de notá-las. 


- Talvez fosse Rudy quem a mantinha sã, com a idiotice de sua falação, seu cabelo encharcado no limão e sua presunçãoinsolencia. 
Ele parecia reverberar uma espécie de confiança em que a vida continuava a não passar de uma piada - uma sucessão interminável de gols e trapaças, e um repertório constante de tagarelice sem sentido. 

- Ele gostava dos círculos compactos e do desconhecido. Da agridoçara da incerteza. Do ganhar ou perder . Era uma sensação de briga, que se agitava até achar que não podia mais tomá-la. O único remédio era dar um passo à frente e soltar murros.


- Na rua Munique, Rudy avisou Deutscher andando pela calçada com uns amigos e sentiu necessidade de lhe atirar uma pedra. Você pode muito bem perguntar que diabo ele estava pensando. A resposta é: provavelmente, nada. Provavelmente, ele diria que estava exercendo seu sagrado direito à estupidez. Ou isso, ou a simples visão de Franz Deutscher provocou-lhe uma ânsia de se destruir.
 
- Uma verdadezinha: Eu não carrego gadanha nem foice. Só uso um manto preto com capuz quando faz frio. E não tenho aquelas feições de caveira que vocês parecem gostar de mem atribuir à distância. Quer saber a minha verdadeira aparência? Eu ajudo. Procure um espelho enquanto eu continuo.
 

- Uma menina bonita. Agora, tinha toda a morte pela frente.
 

- Enquanto pedalava, ela tentava dizer uma coisa a si mesma. Você não merece roubar a felicidade? OU será que ela é apenas mais um infernal truque interno dos humanos?
 


- Quantas delas haviam perseguido outras ativamente, seguindo o rastro do olhar de Hitler, repetindo suas frases, seus parágrafos, sua obra? Seria Rosa Hubermann responsável? Ela, que escondia um judeu? Ou Hans? Será que todos mereciam morrer? As crianças? A responsável a cada uma dessas perguntas me interessa muito, embora eu não possa permitir que elas me seduzam. Só sei que toda aquela gente deve ter intuído minha presença nessa noite, excetuadas as crianças menores. Eu era a sugestão. Eu era o conselho, com meus pés imaginários entrando na cozinha e descendo o corredor.
 
Como tantas vezes acontece com os seres humanos, ao ler a seu respeito nas palavras da menina que roubava livros, senti pena deles, embora não tanta quanto senti dos que recolhi em vários camposnessa época. Os alemães nos porões eram dignos de pena, sem dúvida, mas ao menso tinham uma chance. Aquele porão não era um banheiro. Eles não tinham sido mandados para lá para tomar banho. Para essas pessoas, a vida ainda era alcançável.
 

- No círculo desigual, os minutos se escoaram, pesados.
 

- Provavelmente, é lícito dizer que, em todos os anos do império de Hitler, nenhuma pessoa pôde servir ao Führer com tanta lealdade quanto eu. O ser humano não tem um coração como o meu. O coração humano é uma linha, ao passo que o meu é um círculo, que tenho a capacidade interminável de estar no lugar certo na hora certa. A conseqüencia disso é que estou sempre achando seres humanos no que eles têm de melhor e d epior. Vejo sua feiúra e sua beleza, e me pergunto como uma mesma coisa pode ser as duas. Mas eles têm uma coisa que eu invejo. Que mais não seja, os humanos têm o bom senso de morrer.
 



[Publicado: 11 de setembro de 2009]

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